ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS BRASILEIROS
SEÇÃO LOCAL PORTO ALEGRE
Crônica de uma tragédia anunciada: a política econômica neoliberal, os eventos climáticos e a destruição das condições essenciais da vida no Rio Grande do Sul
Maio de 2024. Camponeses, quilombolas, indígenas, trabalhadoras, trabalhadores urbanos do Estado do Rio Grande do Sul vivem uma das experiências mais dolorosas da sua história. Seja no campo seja na cidade, uma destruição imediata das condições básicas da vida promovida historicamente pela ação política e social que privilegia os interesses econômicos em detrimento da vida. Foram atingidas quase um milhão de pessoas que vivem na área mais populosa do Estado do Rio Grande do Sul, especialmente nos Vales dos Rios Taquari, Caí, Pardo, Jacuí, Sinos, Gravataí, Guaíba e avança para o sistema da Laguna dos Patos, ao que tudo indica em todas as bacias foi superado o nível de água da cheia histórica de 1941.
O nível do rio Guaíba chegou a 5,35 metros superando os 4,76 metros da cheia histórica de 1941, com uma diferença de 59 centímetros de extensão em Porto Alegre. As fotos, os mapas e os relatos são avassaladores no Estado do Rio Grande do Sul, promove-se na mídia um debate que oscila entre o entendimento naturalizante e um entendimento político sobre o processo histórico de ocupação e a formação territorial do Rio grande do Sul, o evento climático e seus desdobramentos.
Não podemos aceitar a leitura simplista e midiática de que a cidade de Porto Alegre por ter sido construída na beira do Rio Guaíba e produzida a partir de um engenhoso sistema de aterro urbano, certamente será sempre afetada pelas cheias, portanto “é a natureza apenas procurando o que é seu”, basta apenas melhorar o sistema de contenção do Rio Guaíba.
Há uma outra leitura possível, a de que ainda que haja a contraditória ocupação urbana nas áreas planas da planície de inundação do Guaíba e um sistema de contenção do avanço das águas na cidade, é evidente as falhas do sistema de contenção; avolumam-se os regimes de chuvas; identificam-se alterações significativas que apontam para a mudança global do clima e intensificam-se processos de ocupação no urbano e no rural que aprofundam a destruição ambiental, a impermeabilização do solo e por fim, que a ausência de uma estrutura técnica e política do Estado para combater os eventos climáticos e a opção pela o desenvolvimento do capitalismo e consolidação das políticas neoliberais deve ser responsabilizada pela magnitude da tragédia.
É preciso enunciar, de modo sucinto, como chegamos até esse momento: uma formação territorial do Estado do Rio Grande do Sul promovida pelo Estado Nação desde o período Imperial fundamentada na exploração madereira, expropriação e genocídio dos povos indígenas, migração subsidiada para a exploração do trabalho camponês, grilagem e apossamento das terras públicas; instituição do poder político oligárquico; estruturação dos órgãos estatais aliançados aos interesses do capital nacional e internacional; desestruturação dos órgãos e instituições do Estado fortemente realizada nos anos 2000 e o aprofundamento do projeto neolioberal de Estado. Nenhuma novidade sobre a história do Brasil, pois esse é o processo compartilhado na escala nacional.
Durante os anos 1990 e começos dos anos 2000 o Estado do Rio Grande do Sul e a Cidade de Porto Alegre viveram períodos importantes no processo democrático estabelecendo estruturalmente políticas sociais, gestão participativa do Estado e fortalecimento de instituições de planejamento e pesquisa no Rio Grande do Sul, estas experiências e estruturas alteraram a vida social no Estado, mas não foram o suficiente para uma mudança estrutural das políticas de Estado aliançadas ao poder econômico e pereceram pelo desmonte neoliberal.
A formação de colegiados, conselhos e comitês estruturam uma política de Estado interessante com muito trabalho realizado e acumulado ao longo de pelo menos 30 anos no Rio Grande do Sul. Lemos nesta última semana entrevistas, reportagens, posts nas redes sociais, lives e manifestações de gestores públicos técnicos, pesquisadores, professores universitários, políticos do campo progressista e da esquerda evidenciado todo esse trabalho e as possibilidades produzidas por este trabalho, todas elas negligenciadas.
Historicamente a pesquisa e a extensão universitária pelas diferentes universidades gaúchas desenvolveram inúmeros relatórios técnicos sobre as condições climáticas, as previsões de alagamentos e enchentes, o alcance dos desdobramentos desses eventos, é um trabalho acumulado, disponível ao poder público e à ação social. O acúmulo do trabalho científico tem sido largamente evidenciado e publicizado no que diz respeito às informações e leituras básicas para que a gestão pública elabore sua ação antes mesmo dessa tragédia.
Há mapas e pesquisas que mostram há muito tempo a evolução do alcance das cheias na cidade de Porto Alegre; há inúmeros recursos que permitem o acompanhamento da evolução dos níveis de água; inúmeros relatórios técnicos e científicos que evidenciam a alterações do clima, planos e projetos junto à defesa civil que ainda não saíram dos estágios iniciais por falta de recursos; trabalhos de pesquisa que apontam para a emergência de realização da política nacional da assistência social que se tornou explícito com o advento da Pandemia da COVID-19; a geografia tem produzido trabalhos sobre a desestruturação ambiental, desmatamento, os processos de grilagem de terras, especulação imobiliária, a luta pela terra, a luta pelo território, a luta pela moradia, uma gama imensa de questões ambientais e sociais articuladas e aprofundadas. Em síntese, múltiplas ações sociais e trabalhos de pesquisa, teses, dissertações de mestrado e trabalhos de graduação têm sido desenvolvido pelo menos há mais de vinte anos com a participação social ampliada pelo acesso à universidade e aos projetos de extensão universitária.
O processo de transformação de florestas em áreas agrícolas da monocultura, a implantação de grandes projetos de exploração dos recursos naturais; a impermeabilização do solo; o desmatamento estrutural; a ampliação do uso de agrotóxicos e a ocupação promovida pela expropriação e valorização do espaço são a base material da alteração ambiental. Há uma diminuição temporal e uma intensificação nos eventos climáticos, discutido amplamente pela comunidade científica em articulação com o aquecimento global e a alteração climática na escala mundial. Tais eventos no Estado do Rio Grande do Sul sucedem de modo cada vez mais acelerado especialmente na última década, aliado ao aumento do desmatamento e as taxas de construção, seja de prédios, seja de barragens, seja dos plantios intensivos.
Todo esse volume de trabalhos indicam que a opção política materializa no poder legislativo que legisla a favor da burguesia nacional e internacional legalizando práticas criminosas inconstitucionais em lei; aloca (e desvia) recursos públicos para projetos econômicos voltados ao desenvolvimento do grande Capital no Brasil e toma decisões políticas de Estado que privilegiam os interesses econômicos.
Assim, para ficar apenas nos últimos dez anos, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul tem trabalhado fortemente para a consolidação do neoliberalismo no Brasil: flexibilizou em mais de 500 pontos o código ambiental e regulamentou essa flexibilização por meio de inúmeros decretos; autorizou a construção de grande edificações em áreas de proteção permanente; desestruturou e ignorou todas as estruturas democráticas de gestão participativa (comitês de bacias hidrográficas, conselhos de cidades, entre outros) que permitiu a aprovação e consolidação de planos de ordenamento territorial que subsidiaram a especulação imobiliária e o avanço da grilagem e apossamento de terras públicas e territórios de povos e comunidades tradicionais; permitiu a construção de barragens, aprovou projetos de exploração de energia eólica, instalação de linhas de transmissão e muitos empreendimentos que atingem povos e comunidades tradicionais sem a realização de audiências públicas e processos de consulta previstos pelos acordos internacionais e normalizados pelo Estado Brasileiro; subsidiou a ampliação do plantio de soja que avança a passos largos sobre os campos de cima da serra e o litoral; tem promovido o arrendamento me terras indígenas e o avanço do plantio de soja sobre elas alimentando conflitos internos e a violência no campo gaúcho; negligenciou a política agrícola para o campesinato gaúcho que sofre desde 2015, ano a ano os impactos das fortes chuvas e da movimentação de ciclones na região. Sem falar na ausência de qualquer debate sobre Reforma Agrária, a obstrução dos processos de demarcação de terras indígenas e quilombolas a partir do aparato dos poderes municipais articulado às oligarquias locais no campo e aos especuladores da cidade, culminando inclusive na perseguição política aos diversos sujeitos sociais envolvidos nos processos e todas as formas de violência que se desdobram em mortes e destruição das ocupações, assentamentos e retomadas.
O trabalho político do Estado é carimbado pelo aumento dos conflitos no campo gaúcho, e, enfim, pela tragédia que acomete as bacias com o maior contingente populacional do Estado. As veias do Rio Grande Sul estouraram, e já há muito tempo que os diagnósticos são precisos e unânimes em dizer que é preciso uma mudança estrutural. Essa é a explicação concreta para compreender que essa tragédia que não só é anunciada, mas se repetirá se não houver uma ação incisiva do poder público e da pressão social, é preciso com urgência fortalecer os movimentos sociais.
É preciso dizer que nas inúmeras ações de resgate, de acolhimento nos abrigos, nas avaliações das condições das escolas e buscas ativas dos alunos (desta vez para saber se estão vivos e com moradia), na organização da mobilidade das pessoas resgatadas para rumos diversos, foi a força das comunidades, o trabalho coletivo que comandou a ação polítca. A necessidade tem produzido um conhecimento técnico e social impressionante, com base no conhecimento das pessoas que vivem e estão sendo mais uma vez expropriadas de seus lugares.
Para nós, geógrafes, geógrafas e geógrafos ficou evidente a centralidade da geografia, dos conteúdos do território, da apropriação do espaço, da compreensão das estratégias da produção do espaço, da relevância da cartografia e de todo o instrumental técnico científico produzido pelo conhecimento geográfico. É seminal nosso trabalho científico e sobretudo político, não há conhecimento que se enraíze na realidade se não estiver comprometido politicamente e assuma sua postura social.
A força das comunidades e da solidariedade é presente, vieram de muitos cantos do Rio Grande do Sul pescadoras(es), remadoras (es), professoras(es), assistentes sociais, médicas (os), enfermeiras (os), psicólogas (os), enfim diferentes profissionais que tem realizado o trabalho de ação e coordenação das ações emergenciais e sabemos que também seremos convocados pela realidade para seguir trabalhando para superar essa tragédia anunciada. A solidariedade é fundamental, mas não é suficiente, o poder público precisa urgentemente fazer seu trabalho e instituir condições estruturais e estruturantes de superação dessa condição de destruição.
O que está acontecendo no Rio Grande do Sul (e se agrava em outras regiões do Estado) e no mês de março no Estado do Acre, que foi atingido praticamente em sua totalidade, é a tragédia anunciada e já vivida em diferentes pontos do Brasil. Não são desastres pontuais ligados de modo circunstancial ao aumento esporádico do regime de
chuvas, ao estouro de uma barragem, de uma enchente, de um deslizamento, a destruição das condições da vida e da vida de milhares de pessoas no país nestes eventos climáticos é um projeto político e é um projeto criminoso. É fundamental que o Brasil inicie de fato um processo de responsabilização histórica e política de seus criminosos, não podemos ficar à mercê do jogo eleitoral que se intensifica em 2024.
Ao poder público cabe de modo evidente e já anunciado barrar as sucessivas reformas no campo legislativo, no estabelecimento de uma política ambiental e social nas diferentes escalas: recuperação de áreas degradadas, demarcação de territórios indígenas e quilombolas, estabelecimento de uma política fundiária fundamentada na Reforma Agrária.
A nós, a força crítica que pulsa pela vida cabe fortalecer as lutas sociais para além das ações imediatas de solidariedade, é tarefa nossa estruturar uma política de enfrentamento e proposição radical de um processo não de reconstrução do estado das coisas, mas de produção de um outro modo de morar, de estabelecer as bases legais que estabeleça a relação entre o ambiente, o trabalho e a vida.
Recebemos nos últimos dias o apoio de associados de diferentes seções locais da AGB e de Seções Locais da AGB pelo Brasil, agradecemos imensamente a Diretoria Executiva Nacional e a AGB São Paulo junto a toda a organização do VIII Congresso Brasileiro de Geografia por prorrogar os prazos de envio de trabalhos.
Para trilhar esse caminho, a AGB Porto Alegre promoverá uma mobilização de arrecadação emergencial e convida a comunidade geográfica para avaliar e discutir as ações para enfrentamento desse momento histórico que vive o Rio Grande do Sul, mas também o Brasil. Em breve anunciaremos estas ações.
Nossa força coletiva é o que seguirá nos colocando em movimento!
Porto Alegre, 08 de Maio de um Outono chuvoso que desastrosamente lavou a produção capitalista do espaço carregando consigo vidas inteiras. Viveremos por muito tempo o luto e a luta. Vamos precisar de todo mundo! Que possamos juntos semear a esperança, e produzir coletivamente um campo e a cidade solidária e comunal
AGB Porto Alegre
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