MANIFESTO
DA CRÍTICA DA GEOGRAFIA FÍSICA À UMA GEOGRAFIA FÍSICA CRÍTICA
NÓS, PARTICIPANTES do VIII Congresso Brasileiro de Geógrafas e Geógrafos da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) “Geo-grafando para construir o Brasil”, em reunião entre os dias 07 e 12 de julho de 2024, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), aprovamos o presente Manifesto, convidando a comunidade geográfica a se somar na construção da Geografia Física Crítica, socialmente comprometida e politicamente posicionada na transformação radical da realidade.
A Geografia Física Crítica Brasileira é, antes de tudo, uma Geografia Crítica. Portanto, se trata de um compromisso político e epistemológico para pensar e fazer Geografia a partir do movimento que tem como objetivo a transformação radical da realidade. Reconhecemos a existência de diferentes tradições no seio deste campo que, historicamente produziu o conjunto de conhecimentos socialmente comprometidos, destacadamente oriundo das contribuições originárias do Prof. Aziz Ab’Saber, e que se sucederam em campos específicos da ciência geográfica, a exemplo da Climatologia Geográfica (Monteiro, 1971), da Geografia Socioambiental (Mendonça, 2001), da Geografia do Clima (Sant’Anna Neto, 2001), dos estudos que conferem centralidade da categoria de ambiente e sua relação com o espaço geográfico uno e múltiplo (Suertegaray, 2002) e da Geomorfologia Geográfica (Vitte, 2010).
Em sua diversidade, tais tendências expressam a riqueza e rigor teórico-metodológico do campo. Até o momento, as diferentes abordagens, teorias, estilos e procedimentos metodológicos utilizados pela comunidade garantiram a consolidação de conjunto consistente de especializações que contribuíram para a produção de conhecimentos sobre as dinâmicas e processos associados à paisagem, aos ambientes e aos territórios.
Nos últimos anos, as dinâmicas da natureza no Brasil expressam a intensificação de eventos extremos de chuva que induzem alagamentos e movimentos de massa catastróficos; diminuição da precipitação em áreas naturalmente úmidas; redução da biodiversidade e alteração dos processos pedogeomorfológicos devido ao agronegócio e mudanças no uso do solo; transformação dos biomas brasileiros pela mineração; apropriação privada da natureza via creditização de carbono; e, produção de energias renováveis com alto impacto social.
Essas mesmas dinâmicas ocorrem em conjunto com os processos de vulnerabilização de grupos sociais no campo e na cidade. Tais grupos são atravessados por decisões de ordem política e econômica que produzem racismo ambiental e misoginia por meio da normalização da necropolítica, levando ao genocídio e feminicídio, sobretudo, da população indígena e negra.
Esse contexto, marcado pelo ultra neoliberalismo, por políticas de retirada de direitos sociais, e de aniquilamentos das gentes, das culturas, dos lugares e da vida em todas as suas dimensões, exigem da Geografia Física brasileira uma inflexão e um outro compromisso. Esse compromisso precisa ser com uma universidade popular, que reconheça os diversos sujeitos que passaram a ocupar o espaço acadêmico, fruto das lutas pelas ações afirmativas, da inovação proveniente do diálogo com movimentos sociais e do processo de interiorização da produção da ciência geográfica. Tais aspectos têm levado a necessidade de assumir novas agendas de pesquisa e de atuação política. Essas agendas resultam de outras perguntas, de outras epistemologias críticas que possam ser capazes de responder às mais diversas realidades outrora negligenciadas e apagadas. Assim, esta inflexão possui o compromisso não apenas com o entendimento da natureza em si, mas dos processos de produção e reprodução da natureza e de espoliação dos povos e dos territórios, buscando elementos radicais de transformação dessas realidades as quais nos propomos a entender. Por isso, defendemos que a Geografia Física brasileira incorpore a crítica como método. A partir disso, se busca superar as formas e os conteúdos da naturalização dessas práticas espaciais, expressas na generalização do “fator antrópico”, na avaliação do funcionamento dos sistemas naturais e na análise diagnóstica da dinâmica das paisagens.
Defendemos ainda, que, enquanto método, a crítica possibilita agir a partir de uma unidade integradora que contempla os diferentes níveis de especialização do nosso saber. Isso permite o combate à tendência de fragmentação exacerbada, sem perder a indissociabilidade entre natureza e sociedade em sua ordem espacial, concreta e real.
Reivindicamos ao campo uma atuação amparada pelo movimento da realidade baseado no diálogo pragmático com as diversas geografias que hoje se propõem a pensar criticamente a partir de diferentes perspectivas, como é o caso das geografias negras, indígenas, camponesas, feministas, anti-capacitistas e as geografias dos movimentos sociais, por exemplo. Tais perspectivas têm buscado a atualização teórica e epistemológica no debate relacional entre natureza-sociedade, vida-morte e terra-território. Por fim, convidamos a comunidade geográfica a se somar na construção da Geografia Física Crítica, que mais do que socialmente comprometida, é também politicamente posicionada e engajada para uma transformação radical da realidade.
Referências
MENDONÇA, F. Geografia Socioambiental. Terra Livre, 16(1): 113 – 132, 2001.
MONTEIRO, C. A. F. Análise rítmica em Climatologia: problemas da atualidade
climática em São Paulo e achegas para um programa de trabalho. Climatologia, 1:
1 – 21, 1971.
SANT’ANNA NETO, J. L. Por uma Geografia do Clima. Antecedentes históricos,
paradigmas contemporâneos e uma nova razão para um novo conhecimento. Terra
Livre, 17(2): 49 – 62, 2001.
SUERTEGARAY, D. Geografia Física (?), geografia ambiental (?) ou geografia e
ambiente (?). In: Mendonça, F.; Kozel, S. (orgs). Elementos de epistemologia da
Geografia contemporânea. 1a edição. Curitiba: Editora da UFPR, 2002.
VITTE, A. C. Breves considerações sobre a história da Geomorfologia Geográfica no
Brasil. GeoUERJ, 12(1): 1 – 19, 2010.
São Paulo-SP, 12 de julho de 2024.
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