Nesta segunda-feira, 06 de novembro de 2023, noticiários brasileiros ecoaram vozes de parte da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) do Congresso Nacional – mais conhecida como bancada ruralista – destoantes com 3 questões componentes do repertório da prova do ENEM 2023, aplicada no domingo, 05 de novembro. Dessas 3 questões, duas têm como enunciado excertos de pesquisas e publicações científicas produzidas por renomados geógrafos brasileiros do campo da Geografia Agrária, com mais de 40 anos de pesquisas científicas realizadas sobre o tema em questão. Na alegação dos parlamentares, esses enunciados estão eivados de “ideologia” contra o agronegócio e, portanto, devem ser anulados, sob o risco de se impetrar uma ação judicial para o cancelamento de todo o certame.

Sobre esta contenda, a ANPEGE – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (que reúne 76 programas de pós-graduação dos 80 existentes nesta área no país e que conta com mais de 5 mil pesquisadores), juntamente com a AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros, têm a dizer o seguinte:

1. O conhecimento científico é produzido a partir de minuciosa investigação que levanta, organiza, seleciona, classifica, quantifica, qualifica e processa informações sobre dada realidade material e o seu cruzamento e articulação com teorias afins. Isto vale para todas as áreas científicas e, portanto, também para as Ciências Humanas e Sociais. Vale pontuar que boa parte das pesquisas que têm como tema os problemas agrários/territoriais no Brasil buscam, também, fontes primárias. Isto quer dizer que pesquisadores(as) vão a campo e coletam informações diretas, colhem depoimentos, mapeiam áreas, etc., para depois cotejar essas informações com dados secundários e o escopo teórico conceitual disponível.

2. A Geografia Agrária, campo da área científica da Geografia, produz conhecimento científico sobre a realidade material da vida no campo: suas dinâmicas produtivas e territoriais; as diferentes formas de apropriação da terra rural; os modos de vida; as condições de trabalho no campo; os tensionamentos; os conflitos de interesses; a violência nas áreas rurais; a importância da preservação ambiental; os impactos da modernização sobre o solo, o clima, os recursos hídricos e as florestas; a relação e a distinção entre produção de alimentos e produção de commodities; a economia agrícola e suas relações espaciais; as articulações entre a produção local e a sua demanda internacional; a relação entre mercado financeiro e agricultura; e, mais recentemente, retornou a estudar a fome na sociedade brasileira, problema dramático que voltou a assombrar a realidade de um país que se diz produtor de alimentos; dentre outros temas.

3. Os excertos utilizados pelos elaboradores da prova do ENEM 2023 nos enunciados das questões que motivam a tentativa de censura pela Frente Parlamentar da Agropecuária, notadamente nas de número 70 (da prova branca: 71 na azul, 57 na amarela e 81 na rosa) e 89 (da prova branca: 48 na azul, 81 na amarela e 57 na rosa), expressam determinados aspectos do que as pesquisas científicas dos respectivos geógrafos concluem sobre as realidades analisadas. Tais pesquisas reiteram algo que não apenas a comunidade geográfica tem alertado, mas toda a comunidade científica de um modo geral, independente da área científica e de ser brasileira ou estrangeira, bem como técnicos de órgãos estatais nacionais e internacionais que analisam informações sobre o Brasil: o avanço do agronegócio violenta e desterritorializa comunidades tradicionais que dominam o manejo sustentável da biodiversidade, especialmente nos biomas Cerrado e Amazônia. Parte desse avanço é realizada sob o signo da “grilagem de terras”, o que significa apropriação privada ilegal e ilegítima de terras públicas.

4. Na Amazônia – território constituído fundamentalmente por áreas devolutas – a extração madeireira, as queimadas e a pecuária (todas produtoras de CO² e de gás metano) são estágios anteriores à produção de commodities, com destaque para a soja. É cientificamente comprovado que a compressão da floresta tem reduzido a absorção desses mesmos gases e a produção do oxigênio, bem como diminuído a constituição das chamadas “rios voadoras”, que não só renovam a própria Floresta Amazônica como também hidrata o Cerrado. Este é responsável pela produção e distribuição de água doce a parte do continente americano, uma vez que as raízes profundas de suas gramíneas permitem a absorção da água das chuvas às profundezas da terra, alimentando os aquíferos de Guarani, Bambuí e Urucuia. Contudo, a radical transformação da paisagem natural do Cerrado pelo agronegócio desde a década de 1970 reduziu drasticamente o seu potencial de produtor de água doce. É importante destacar que este é um conhecimento científico sedimentado na literatura na nacional e internacional há mais de 30 anos.

5. Os pesquisadores autores dos textos utilizados na prova do ENEM são doutores com vasta experiência acadêmica e científica, com larga publicação de livros e artigos, carreira consolidada e premiados por suas respectivas comunidades. As conclusões de suas pesquisas estão em consonância com o que apontam o IBGE, o IPEA, o INPA, os institutos estrangeiros dedicados a compreender a dinâmica ambiental brasileira e que subsidiam o entendimento de governantes das principais nações mundiais sobre a importância dos biomas brasileiros.

Com base nessa compreensão, identificamos na insatisfação e na manifestação barulhenta de parte dos congressistas ranços do negacionismo científico que marcou o tenebroso período recente de governo fascista, ultraliberal e de extrema-direita, que esta mesma bancada ruralista ajudou a eleger e a manter no poder. Este comportamento rancoroso sim, precisa ser compreendido como manifestação de uma ideologia extemporânea, classista e excludente, que sentencia o Brasil a ser uma nação socialmente injusta e com desigualdades econômicas abissais, subordinada ao colonialismo globalitário e que condena o mundo à beira do fim. Vale, por fim, destacar que a nota de ameaça e censura publicada pela Frente Parlamentar da Agropecuária usa a noção de negacionismo científico contra os próprios cientistas e os resultados das suas pesquisas, em uma inversão absurda e tragicômica da realidade. Ao acusar os próprios cientistas de negacionistas a FPA não apresentou as suas pesquisas científicas, tendo destacado dados econômicos (e territoriais) em certa parte contestáveis, o que revela o seu verdadeiro interesse: o lucro a qualquer custo.

Nota disponível na íntegra: Nota de repúdio à tentativa de censura ao ENEM 2023

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