CARTA DE FORTALEZA

Para toda a comunidade geográfica brasileira,

Nós educadores e educadoras reunidos(as) neste fórum, vimos por meio desta denunciar os sucessivos golpes e ataques que a educação pública brasileira vem sofrendo em função das reformas neoliberais desde os anos 1990, cujo marco foi a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, ocorrida em Jomtien na Tailândia em março daquele ano. A partir de então, dado o grande contingente populacional e as características da área educacional, a Educação passa a ser pautada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) porque passa a ser entendida como condição e expressão do desenvolvimento econômico. Desde então, reformas educacionais vêm sendo impostas por organismos multilaterais, principalmente o FMI – Fundo Monetário Internacional e o BM – Banco Mundial, um dos estrategistas para a viabilização do modelo econômico neoliberal e uma das principais agências de formulação do ajuste estrutural imposto aos denominados países em desenvolvimento. Tais ações evidenciam seu papel como guardião dos interesses de grandes credores internacionais, pois além de assegurar o pagamento da dívida externa viabiliza a reestruturação econômica de países como o Brasil, forçando a abertura de sua economia.

É neste contexto que reformas neoliberais passam a ser efetivadas na área educacional a fim de, neste momento, formar trabalhadores em um contexto de acumulação flexível, caracterizada por altos níveis de desemprego estrutural, baixos salários, rápida reconstrução de habilidades, portanto, precarização do trabalho. Com a ampliação da riqueza e do poder na mão de poucos, o capital recrudesce a acumulação por espoliação, expropriando bens públicos e os grupos comunais de seus recursos e terras, fazendo avançar os negócios nas terras tradicionalmente ocupadas. Nos últimos anos, sobretudo por meio da mercantilização, financeirização e globalização que intensificaram as políticas neoliberais resultando em um conjunto de necropolíticas, intensificadas pela perversidade com que o governo de Jair Messias Bolsonaro administrou a Covid-19 que levou ao aprofundamento da crise econômica que relegou à miséria e à fome mais de 33 milhões de brasileiros.

Tais reformas foram idealizadas ainda durante o governo de Dilma Rousseff. A agudização das reformas neoliberais culminou em 2017, no governo golpista de Michel Temer, com a imposição da BNCC – Base Nacional Comum Curricular para a Educação Infantil, anos iniciais e finais do Ensino Fundamental e, em 2018, com a BNCC do Ensino Médio, ambas elaboradas e aprovadas com aligeirados e precários debates, portanto, sob forte crítica por parte dos educadores e educadoras da educação básica, dos pesquisadores, das entidades e sindicatos que, desde então, vêm denunciando mais este golpe junto à educação pública. Logo em seguida, o cenário de mortes, crise econômica, fome e outras misérias, agudizados pela Pandemia da COVID-19 foi utilizado estrategicamente para impor a Reforma do Novo Ensino Médio que, de acordo com pesquisadores da área educacional, retoma a lógica e o discurso presentes nos textos e políticas curriculares do final dos anos 1990 dada a centralidade conferida à noção de competências, reintroduzindo neste nível educacional limites já denunciados por pesquisadores, dado o seu caráter pragmático, a-histórico e mercantil. 

Para fechar o cerco à educação pública, o necrogoverno, juntamente com um Conselho Nacional de Educação por ele aparelhado, aprovou duas Resoluções voltadas à reforma das licenciaturas: a CNE/CP nº 02/2019 que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação inicial de professores da Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação) e a CNE/CP nº 1/2020 que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da Educação básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação básica (BNC-Formação Continuada). Tais resoluções, amplamente questionadas pela quase totalidade das licenciaturas do país, por pesquisadores, entidades de classe e sindicatos têm sido questionadas em sua inconstitucionalidade pois, além de desrespeitarem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de professores da Educação Básica (Resolução CNE/CP nº 1/2002), ferem o princípio da autonomia universitária.

Neste segundo momento de reformas educacionais voltadas à educação brasileira, verificamos permanências – o entendimento de que a mesma deve servir ao desenvolvimento econômico formando trabalhadores e trabalhadoras submissos, treinados, portanto, subalternizados. Somado a essa perspectiva, verifica-se também a intensificação da mercantilização e da financeirização por meio de vários processos: distribuição dos fundos públicos a empresas ligadas à Tecnologia da Informação e Comunicação (Tics), à terceirização de contratações, à administração das escolas, ampliando os dividendos dos conglomerados educacionais, transformação da formação continuada em treinamento para viabilização de tais processos, fechamento de escolas, sobretudo àquelas que atendem aos sujeitos e sujeitas periferizados(as), precarização salarial dos contratos dos professores e de suas condições materiais de trabalho que resultam, somado a outros fatores, no adoecimento dos profissionais que atuam na educação básica. As questões elencadas levaram a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) a pautar as temáticas trabalhadas no presente evento que reuniu professores de geografia de todo o Brasil, que sintetizamos nas linhas que seguem.

A referida política, no campo da educação, caminha no sentido de transformar a escola pública de educação básica e os docentes em formadores de mão de obra cada vez mais precarizada, tendo em vista uma lógica mercadológica que preconiza um trabalhador flexível, empreendedor, resiliente e proativo para atender as demandas de setores econômicos que não podem abrir mão da força de trabalho vivo, mas que o precariza cada vez mais com objetivo sempre crescente de acumulação de capital.

A Geografia, ciência e disciplina escolar, não ficou incólume a essas mudanças. Inserida no currículo escolar enquanto componente de uma área do conhecimento no Novo Ensino Médio – Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – que carece de estatuto epistemológico, como estabeleceu a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2018), resta, cada vez mais, cerceada com o enxugamento dos seus conteúdos numa lógica que privilegia um currículo fundamentado nas competências em prejuízo de um outro firmado nos conhecimentos socialmente produzidos e necessários para a compreensão crítica dos arranjos espaciais.

Consideramos um contrassenso para a formação de nossas juventudes pois, na prática, interditou as contribuições que cada uma das disciplinas poderia prover na formação dos estudantes. No que se refere em específico à Geografia, que compõe a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, houve um corte abrupto de seus conteúdos, tanto referentes à Geografia Física quanto aos concernentes à Geografia Humana. Fato que nos tem preocupado e sobretudo, aos colegas que estão diariamente nas salas de aula das escolas públicas brasileiras.

Chamamos atenção ainda para o fato preocupante de se atrelar à BNCC a BNC-Formação pois assim abre-se mão, consciente ou inconscientemente, de uma formação inicial e continuada que vise o desenvolvimento de docentes-pesquisadores pois aos mesmos acabam sendo imputados o papel de mero executores das demandas de um currículo prescritivo e que, inclusive, substitui as disciplinas por cursos de “como empreender”.

Reforça-se, todavia, que se ministrada numa perspectiva crítica, a Geografia possibilita uma efetiva formação dos estudantes da educação básica voltada para a construção de uma educação que privilegie a formação de sujeitos conscientes do lugar que ocupam na sociedade contemporânea e, dessa forma, aptos a compreenderem e enfrentarem as contradições das mesmas com vistas à construção de uma sociedade mais justa, onde todos os seres tenham vidas dignas.

O que assistimos hoje ao constatarmos a regulação de alguns conteúdos, da disciplina Geografia, já ocorreu anteriormente com a implementação da Lei 5.692, em 1971, que instituiu entre outras, a disciplina de Estudos Sociais substituindo a História e a Geografia. Infere-se dessa forma que, em períodos de autoritarismo em nosso país, as disciplinas das áreas das Ciências Humanas estão sempre na “berlinda”, assim como a própria escola e o currículo escolar. Nesse sentido, se reforça uma educação formal de caráter instrumental que ignora a dimensão histórico-cultural da formação humana. O discurso é da necessidade de adaptação com adequação à lógica do mercado, que contém uma noção abstrata de cidadania. Importante destacar que esta imposição foi superada pelas lutas dos professores e professoras, suas entidades de classe, sindicatos e dos pesquisadores. 

Por todos esses motivos é preciso estarmos atentos e fortes! E acima de tudo, dispostos à luta!

AGB e Fala Professor em defesa: a) da escola e da universidade pública, gratuita de qualidade socialmente referenciada e com autonomia; b) de um projeto democrático e popular de educação brasileira; c) da revogação: de currículos prescritivos (BNCC), da Reforma do Novo Ensino Médio e da BNC – Formação Inicial e Continuada; d) da paralisação do processo de revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais de Geografia (DCNs); e) da revogação do conjunto das contra reformas que precarizaram a vida do povo brasileiro nos governos golpistas. 

Fortaleza, CE, 21 de julho de 2023.

Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB)

Carta disponível na íntegra: CARTA DE FORTALEZA

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